SOCIALISMO: Um Projecto de Sociedade

Miguel Judas

PARTE I BREVE ENQUADRAMENTO HISTÓRICO

CAPÍTULO 1 Da fase dispersiva à "fusão" das sociedades humanas

As sociedades capitalistas actuais são o resultado de um longo processo histórico durante o qual a Humanidade conseguiu superar a sua extrema dependência das forças naturais e alcançar uma grande expansão demográfica.

A Comunidade Primitiva: Há cerca de 80.000 anos, um grupo de umas poucas centenas de humanos como nós, provavelmente uma única tribo, atravessaram, provavelmente pelo Estreito de Grief, de África para o actual Iémen. Durante 70.000 anos, esses humanos dispersaram-se e, em busca de recursos naturais de sobrevivência, ocuparam quase todos os nichos ecológicos do planeta. A sua organização social manteve-se quase inalterada sob a forma da comunidade primitiva, caracterizada pela cooperação e por uma extrema interdependência entre todos os seus membros. A existência individual só era viável se totalmente integrada no organismo comunitário primordial ligado por laços de parentesco, o bando ou clã ou, por desdobramento deste, a tribo. Se bem que dotados de lideranças sociais, essas comunidades eram governadas pelo método do Consenso Comunitário; o seu Projecto Social, isto é, a sua Ideologia, coincidia com uma existência harmoniosa com as dinâmicas da Mãe-Natureza ou Mãe-Terra. O seu modo de produção era a caça e recolecção e a divisão do trabalho era muito incipiente, resultante essencialmente, das funções de maternidade da mulher. Durante a fase dispersiva da Humanidade, na medida em que havia novos territórios disponíveis com recursos suficientes, as disputas por estes resolviam-se preferencialmente pelo deslocamento territorial dos grupos menos numerosos. Ocupado globalmente o território, iniciou-se um período de competição pela defesa ou alargamento dos nichos ecológicos de que dependia a subsistência de cada um dos organismos comunitários. Como resultado, houve organismos que puderam crescer e outros que foram eliminados ou parcialmente integrados nos organismos vencedores. Mesmo depois da domesticação de animais, os assentamentos comunitários não eram fixos, deslocando-se em conformidade com os ciclos naturais de maturação de recursos alimentares para os humanos e os seus animais. Ainda hoje existem muitos povos que continuam a praticar essa economia natural.

Revolução Agrícola, Divisão das Sociedades em Classes Sociais e Sistema Económico Tributário Com o surgimento da agricultura em diversos lugares do mundo, as comunidades sedentarizaram-se e desenvolveram tecnologias que elevaram extraordinariamente a produtividade do trabalho social. Essas condições permitiram a criação de excedentes alimentares que, para além de um progressivo aumento demográfico, conferiram às comunidades agrícolas outras significativas vantagens sobre as demais. O parcelamento das terras agricultáveis pelos diversos grupos familiares e a correspondente diferenciação na apropriação dos excedentes veio a introduzir factores de diferenciação social dentro da comunidade, assim como novas formas de divisão do trabalho. Como resultado, as comunidades começaram a estratificar-se internamente. O poder gerado pela acumulação primária de excedentes incentivou o alargamento da base social de exploração, tendo levado à incorporação, pacífica ou forçada, de cada vez mais comunidades na produção agrícola e pecuária. Essa incorporação tomou formas diferenciadas, desde a escravização de indivíduos ao estabelecimento de laços de "dependência" e de tributação de outras comunidades mais fracas. Iniciou-se assim um processo extensivo de domínio de territórios e de submissão de comunidades de modo a aumentar sucessivamente a base de recolha de tributos e, consequentemente, de acumulação. Foi nesse quadro que, ao longo de muitos séculos, praticamente até à emergência da burguesia, o sistema de produção tributário, assente na exploração agrícola e nas suas actividades acessórias (artesanato e trocas), se desenvolveu extensivamente por todo o globo terrestre e deu origem, com avanços e recuos, a um longo processo de "fusão" de comunidades através da formação de unidades político-territoriais cada vez mais extensas, os domínios, estados e impérios. As Religiões como instrumento ideológico Essa "fusão" de povos, feita a "ferro e fogo" e tendo como motivação a máxima extensão da base de recolha de tributos, suportou-se ideologicamente nas religiões entretanto institucionalizadas a partir das antigas crenças sobrenaturais. Para além de justificarem a transferência da riqueza para a cleptocracia, as religiões constituíram elementos de identificação e de pacificação entre indivíduos, comunidades e povos independentemente dos seus laços de parentesco, o que permitia a constituição de unidades populacionais progressivamente maiores, mais complexas e militarmente mais poderosas. Ao afirmarem uma "origem divina" ao Poder, as religiões justificaram a existência de uma autoridade central e o seu carácter hereditário, reforçando desse modo a coesão das diferentes unidades político-territoriais. Estratificação social e poder político Toda a história antiga e medieval, apesar da sua aparente complexidade relativa às diferentes situações verificadas em diferentes regiões e ao longo do tempo quanto à extensão territorial, recursos naturais, demografia e cultura, se resume à progressiva constituição de unidades político-territoriais cada vez mais extensas sob o domínio de uma cleptocracia estratificada e hierarquizada. A cleptocracia era constituída pelos membros do poder político-militar e pelas classes a ele agregadas (religiosos e funcionários), as quais não desenvolviam directamente quaisquer actividades produtivas; viviam do saque e dos tributos aplicados às classes e comunidades trabalhadoras, livres ou dependentes, e da exploração do trabalho escravo e servil. A riqueza acumulada e a escassez de cidadãos livres para as guerras de dominação levaram, frequentemente, à adopção do mercenariato nas funções militares. Houve momentos em que, no seio de uma comunidade/sociedade dominante, vigorou o modelo político da república e a democracia representativa, como em Atenas e Roma; porém, o modelo dominante em todo o período foi a monarquia hereditária. Depois do Império Romano e em consequência das invasões bárbaras, a generalidade da Europa mergulhou em mais de mil anos de obscurantismo religioso e numa extraordinária fragmentação política que correspondia aos interesses da estruturação social dos mais diversos clãs, tribos e domínios dos invasores. Conforme Engels refere no "Anti-Duhring", "toda a ideia de igualdade foi varrida por séculos, levantando-se, pouco a pouco, uma hierarquia social e política tão complicada como até então não se conhecera; ergueu-se também, pela primeira vez na história, um sistema de Estados predominantemente nacionais, que se influenciavam e se contrapunham uns aos outros. Foi desse modo que se preparou o terreno para, tempos mais tarde, (sob o impulso da burguesia), ser possível falar-se da igualdade humana e dos direitos do homem". Em consequência, o próprio processo de criação de Estados nacionais centralizados, isto é, de um aparelho do Estado com finanças e um exército unificados, foi um processo muito lento, só acelerado na fase final do período, por necessidade de assegurar as condições de desenvolvimento da economia mercantil, no quadro da constituição dos estados-nação. Apesar de as sociedades se terem tornado gradualmente mais complexas e centralizadas, praticamente todos os assuntos relacionados com a vida quotidiana das populações continuavam a ser tratados directa e autonomamente por estas, com base na posse dos seus próprios meios de produção, nas suas tradições e nas relações comunitárias. Estas relações, provindas das antigas relações primordiais, foram sofrendo sucessivas adaptações ao longo dos séculos, tanto em função das modificações ocorridas nos sistemas produtivos e dos novos papéis neles desempenhados pelos indivíduos como, especialmente, pelas imposições religiosas e ideológicas dominantes.

Economia Mercantil Com o desenvolvimento da economia agrícola e artesanal, o crescimento das cidades e da riqueza das classes dirigentes, desenvolveram-se igualmente as actividades comerciais, tanto no plano interno de cada formação política como o comércio a longa distância. Despontou assim do seio do povo uma nova classe, a burguesia comercial, que já em 1383-85 influenciou uma revolução política em Portugal. O Renascimento e as "descobertas" europeias dos séculos XV e XVI traduzem a gradual ascensão burguesa no seio da sociedade medieval e uma rápida aceleração das actividades produtivas e comerciais no quadro da economia mercantil, caracterizada pela produção intencional de mercadorias para a troca. Inicialmente mais centrados no comércio a longa distância, cujas vantagens compartilhavam com a aristocracia e onde praticavam de modo generalizado o saque e a escravatura de povos subjugados, os mercadores estimularam também a organização da produção artesanal em manufacturas e o seu desenvolvimento mediante o fornecimento de matérias-primas e instrumentos de trabalho e pela comercialização dos respectivos produtos. Com a economia mercantil iniciou-se progressivamente, no âmbito dos países centrais que a adoptaram, o processo de domínio das actividades produtivas e de troca pelo Capital, através da propriedade dos meios de produção e da exploração do trabalho assalariado. Desenvolveu-se a inovação técnica e a divisão do trabalho no quadro das manufacturas e da gestão comercial e financeira, conferindo à burguesia um crescente carácter empreendedor na esfera da produção manufactureira. Com o modo de produção mercantil iniciou-se uma fase nova da história da Humanidade: o da intensificação produtiva e da primeira onda da integração mundial, a criação de um "sistema-mundo".

Revoluções burguesas. Revolução Industrial. Capitalismo. Integração económica mundial As revoluções burguesas A burguesia comercial e manufactureira tornou-se uma classe economicamente muito poderosa cujos interesses se contrapunham a todo o tipo de restrições da sociedade aristocrático-medieval à livre iniciativa e à circulação de mercadorias e factores de produção. O processo da sua irrupção como classe dominante foi muito irregular nos diversos países europeus, acompanhando o desenvolvimento da Revolução Industrial e a implantação do modo de produção capitalista, orientado para a obtenção de lucro e a acumulação de capital. A Revolução Americana de 1776 foi feita por homens livres, que proclamaram a sua Independência e redigiram a sua Constituição sem qualquer preconceito ou atadura medievalista, sem brasões, reis, duques ou condes, sem preconceitos religiosos retrógrados ou religiões dominantes; esse sentido libertário não impediu, porém, a continuidade da exploração escravocrata no sul e a expansão para Oeste ter sido realizada à custa da expropriação e genocídio das populações índias. O mesmo sentido libertador percorreu, logo no início do século XIX, toda a América Latina, sob o impulso de Bolívar e outros revolucionários progressistas, sem contudo atingirem plenamente os seus objectivos, dado o peso das velhas classes aristocráticas coloniais e a influência dominante de uma igreja católica retrógrada. Em França, só emerge com a Grande Revolução de 1789-1793, tendo sido necessárias mais três revoluções, em 1830, 1848 e 1871, para que os seus objectivos fossem alcançados. Na Inglaterra, o poder da burguesia só se vê consolidado com a reforma de 1832, 200 anos após a revolução de Cromwell, em 1649, e 50 anos depois da "gloriosa revolução" de 1688-1689. Na Alemanha houve duas revoluções democráticas burguesas (1848 e 1918) e, entre estas, as reformas drásticas dos anos de 1860 que Bismarck realizou através de "ferro e sangue". Na península ibérica, só ao longo dos séculos XIX e XX as burguesias de Portugal e de Espanha se tornam dominantes, se bem que sempre carregando os fardos culturais e dos interesses das velhas classes aristocráticas. Na Rússia, depois da revolução gorada de 1905, o domínio político da frágil burguesia só se efectivou episodicamente entre Fevereiro e Outubro de 1917, tendo nesta data o poder transitado para uma aliança do proletariado com o campesinato. Só em 1991 esse domínio foi formalmente restabelecido e alargado a todo o vasto conjunto de países antes integrados na URSS. As revoluções burguesas romperam com o ordenamento social e económico anteriores, afirmaram os princípios da Liberdade e da Igualdade perante a lei; recuperaram parcialmente, através da democracia parlamentar, o princípio do Consenso Comunitário enquanto instrumento de legitimação do Poder e libertaram as grandes massas populares das relações de servidão, abrindo os espaços, em cada país, para a livre mobilidade territorial das pessoas, mercadorias e capitais. Esta libertação dos homens da sua relação com a terra e com os seus senhores, permitiu o rápido desenvolvimento das actividades manufactureiras, tanto nos campos como nas cidades e, com a extinção das alfandegas internas, o livre comércio de mercadorias por todo o território de cada país. Nos novos países ultramarinos que ficaram isentos das influências aristocráticas medievais e das religiões mais retrógradas, criaram-se comunidades livres que deram continuidade à tradição de auto-governo social e que construíram o Estado a partir do zero, à medida que as instituições se tornavam necessárias. Sempre que aquelas influências medievais e religiosas persistiram, como na Europa e na América Latina, os Estados, mesmo que globalmente ao serviço da burguesia, continuaram a impor-se às sociedades e a inibirem as iniciativas de auto-organização social, preferindo, quando necessário e da conveniência do sistema, organizar eles próprios, sem a participação popular, algumas das funções necessárias à reprodução da vida social.

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